A Reserva Natural do Cavalo do Sorraia, localizada em Alpiarça, é hoje um dos mais importantes espaços dedicados à preservação desta raça equina autóctone, outrora quase esquecida. O local, que em tempos funcionou como uma espécie de jardim zoológico com espécies tão diversas como dromedários e avestruzes, caiu em desuso e abandono durante o final do século XX, fruto de anos de desinvestimento.
Foi já nos primeiros anos do século XXI que o espaço ganhou nova vida, graças ao empenho de João Serrano, na altura membro da Câmara Municipal de Alpiarça. Em conversa com o Notícias do Sorraia (NS), João Serrano recorda como tudo começou. Durante uma estadia nos Estados Unidos, reconheceu nos mustangues americanos traços dos cavalos Sorraia, o que despertou o seu interesse. De regresso a Portugal, apresentou à autarquia o projeto de criação de uma reserva para proteger esta raça, descoberta originalmente por Ruy de Andrade no vale do Sorraia.
O projeto arrancou com a aquisição de duas éguas e com o contributo da Quinta da Boavista, em Vale Figueira, que cedeu um garanhão. Assim se iniciou a linhagem de Cavalos do Sorraia em Alpiarça. Os primeiros poldros nasceram em 2004, com os nomes de Zéfiro e Zénite, marcando o início de um trabalho contínuo de preservação e valorização da raça.
João Serrano relembra que o objetivo era dar visibilidade a uma espécie até então marginalizada: “Era vista apenas como um cavalo de trabalho. Começámos a participar em feiras, exposições e concursos, para mostrar que afinal era um cavalo dócil, bonito e com grandes potencialidades.”
Paralelamente ao trabalho de promoção, foi desenvolvido um rigoroso estudo científico. Descobriu-se que os genes do Sorraia estão presentes em várias raças de renome mundial, incluindo os cavalos reais austríacos, os mustangues americanos e até os cavalos lusitanos. “O Cavalo do Sorraia é o cavalo primitivo da Península Ibérica”, afirma Serrano, que criou, juntamente com a investigadora Maria do Mar, o Stud Book do Cavalo do Sorraia.
Durante os Descobrimentos, o Cavalo do Sorraia desempenhou um papel essencial. Era o escolhido pelos navegadores portugueses e espanhóis para atravessar o Atlântico, dada a sua resistência, sendo fundamental para o povoamento do continente americano. “Só foi possível povoar aquele continente gigantesco no dorso de cavalos do Sorraia”, sublinha o especialista.
Atualmente, a Reserva Natural do Cavalo do Sorraia é uma das principais atrações turísticas de Alpiarça. Para além de eventos como o Sorraia Fest e o Kids Fest, o espaço continua a albergar alguns animais de outras espécies, como pavões, galinhas sedosas, cabras, ovelhas e burros. A população equina ascende agora a cerca de 30 exemplares da raça Sorraia.
A reserva também inclui uma escola de equitação, que promove aulas e atividades terapêuticas com cavalos. Em parceria com instituições de solidariedade social da região, são desenvolvidas sessões de hipoterapia orientadas por tratadores e terapeutas especializados. Daniel Brás, responsável pelos animais, destaca os benefícios da terapia equestre, especialmente para crianças com dificuldades motoras: “O movimento do cavalo a passo imita o caminhar humano, ajudando no equilíbrio e na motricidade.”
Contudo, a reprodução da raça enfrenta desafios sérios. A consanguinidade, devido à reduzida variabilidade genética e à origem comum de todos os exemplares modernos, tem causado perdas durante a gestação e o nascimento de crias com malformações. Daniel Brás revela que o foco atual é precisamente mitigar esse risco, assegurando a continuidade saudável da espécie.
A Reserva Natural do Cavalo do Sorraia continua, assim, a ser um exemplo de como a dedicação, a ciência e a paixão podem unir-se para preservar um património vivo e valioso do Ribatejo e da Península Ibérica.